quinta-feira, 15 de abril de 2010

"A EXPERIÊNCIA DO DR HEIDEGGER", de Nathaniel Hawthorne





Aquele homem estranho, o velho Dr. Heidegger, convidou certa vez quatro respeitáveis amigos a fazerem uma visita ao seu laboratório. Eram três cavalheiros de barbas brancas - o Sr. Medbourne, o coronel Killigrew, o Sr. Gascoigne e uma velha dama conhecida por a viúva Wycherly - todos criaturas idosas e melancólicas que haviam sido infelizes na vida e cujo maior infortúnio era o de não repousarem há já muito nos seus túmulos. O Sr. Medbourne, em tempos um próspero negociante, tudo perdera numa especulação arriscada, e agora quase não passava de um mendigo. O coronel Killigrew consumira os melhores anos da sua vida, bem como a sua saúde e a sua fortuna, na busca de prazeres pecaminosos, que haviam dado origem a uma série de doenças, tais como a gota e diversos outros tormentos do espírito e do corpo. O Sr. Gascoigne, um político arruinado, gozara de péssima reputação, pelo menos até que o tempo o fez apagar da memória, e para a actual geração, em vez de um infame, se tornou um desconhecido. Quanto à viúva Wycherly, a tradição dizia que fora uma grande beleza na juventude; mas desde há muito que vivia na mais completa reclusão devido a certas histórias escandalosas que a haviam prejudicado no conceito das pessoas da cidade. Merece menção especial o facto de estes três cavalheiros - o Sr. Medbourne, o coronel Killigrew e o Sr. Gascoigne - terem sido todos amantes da viúva Wycherly e quase se haverem matado uns aos outros por sua causa. E, antes de prosseguir, apenas referirei que tanto o Dr. Heidegger como os seus quatro convidados eram, por vezes, considerados um pouco extravagantes - como acontece frequentemente com as pessoas idosas, quando preocupadas com os seus males presentes ou recordações amargas.



- Meus queridos e velhos amigos - começou o Dr. Heidegger, convidando-os a sentarem-se - preciso do vosso auxílio para uma daquelas pequenas experiências com que me costumo entreter, aqui, no meu laboratório.



Se o que se contava era verdade, o laboratório do Dr. Heidegger devia ser um lugar deveras curioso. Tratava-se de um compartimento escuro e antiquado, engrinaldado de teias de aranha e coberto de pó. Nas paredes havia várias estantes de carvalho, cujas prateleiras inferiores estavam carregadas com fileiras de in-fólios gigantescos e in-quartos em letra gótica, e as superiores, de pequenos in-duodécimos encadernados em pergaminho. Sobre a estante central havia um busto de bronze de Hipócrates, ao qual, segundo algumas pessoas dignas de crédito, o doutor costumava pedir conselho em todos os casos difíceis do seu mister. No canto mais escuro do compartimento existia um armário estreito e alto, de carvalho, com a porta entreaberta, dentro do qual dificilmente se distinguia um esqueleto. Entre duas estantes estava pendurado um espelho, alto e empoeirado, dentro de uma moldura dourada, com algumas manchas. Entre as muitas histórias maravilhosas que se contavam acerca desse espelho, corria uma, segundo a qual os espíritos de todos os defuntos pacientes do médico habitavam no seu interior e costumavam fitar-lhe o rosto, sempre que ele olhava para lá. A parede oposta do compartimento estava ornamentada com o retrato de uma jovem, em tamanho natural, magnificentemente vestida de seda, cetim e brocado, já desbotados, e de rosto tão desbotado como o vestuário. Há mais de meio século, o Dr. Heidegger estivera para casar com esta jovem; porém, acometida por uma indisposição ligeira, ela tinha tomado uma das receitas do seu apaixonado e morrera na noite de núpcias. Mas a curiosidade mais interessante do laboratório não foi ainda mencionada: trata-se de um pesado volume, encadernado em pele negra e com fechos de prata maciça. Não tinha letras na capa, e ninguém sabia qual o seu título. Era, contudo, crença geral que se tratava de um livro de magia; e, quando certa vez uma criada o levantara, apenas para lhe limpar o pó, o esqueleto remexera-se no armário, o retrato da jovem dera um passo para o chão, e vários rostos pálidos haviam espreitado de dentro do espelho, enquanto a cabeça bronzeada de Hipócrates franzia as sobrancelhas, exclamando:



- Pára!



Era assim o laboratório do Dr. Heidegger. Naquela tarde de Verão em que decorre a nossa história, no centro do quarto via-se uma pequena mesa redonda, negra como o ébano, sobre a qual se encontrava um vaso de vidro lapidado, de rara beleza. O sol penetrava pela janela, através das pesadas grinaldas de duas cortinas de damasco desbotadas, e incidia directamente sobre o vaso, de tal maneira que nos rostos pálidos das cinco pessoas sentadas em derredor se reflectia uma luz suave. Em cima da mesa havia também quatro taças de cristal.



- Meus queridos e velhos amigos - repetiu o Dr. Heidegger - posso contar com a vossa ajuda para realizar uma experiência extremamente curiosa?



Ora o Dr. Heidegger era um velho muito estranho, cujas excentricidades haviam dado azo a mil histórias fantásticas. Algumas delas, confesso-o, poder-me-ão ser atribuídas e, se certas passagens da que estou a narrar espantarem a credulidade do leitor, terei de me conformar em ser apodado de inventor de fantasias.



Quando os quatro convidados do médico o ouviram referir-se à experiência que se propunha realizar, imaginaram que se trataria de qualquer coisa como o assassínio de um rato numa máquina pneumática, ou da observação de uma teia de aranha ao microscópio, ou de qualquer outro disparate deste género, com que tinha por hábito causticar os seus íntimos. Mas, sem esperar por resposta, o Dr. Heidegger atravessou o quarto, coxeando, e voltou com o tal livro volumoso, encadernado em pele negra, que os espíritos mais fracos acreditavam ser um livro de magia. Abrindo os fechos de prata, folheou o volume donde tirou uma rosa, ou melhor, o que fora em tempos uma rosa, embora as folhas verdes e as pétalas rubras tivessem adquirido uma tonalidade acastanhada e a flor velha parecesse prestes a desfazer-se em pó nas mãos do médico.



- Esta rosa - disse o Dr. Heidegger, soltando um suspiro -, esta flor seca e a desfazer-se em pó tem cinquenta e cinco anos. Deu-ma Silvia Ward, cujo retrato está pendurado além. Tencionava usá-la na lapela, no dia do nosso casamento. Guardei-a religiosamente, durante cinquenta e cinco anos, entre as folhas deste velho livro.



- Acaso acreditais que esta rosa, com meio século de existência, possa florir de novo?



- Que tolice! - exclamou a viúva Wycherly, sacudindo impacientemente a cabeça. - É o mesmo que perguntar se o rosto enrugado de uma mulher velha poderia alguma vez rejuvenescer.



- Então vede! - respondeu o Dr. Heidegger.



Destapou o vaso e lançou a rosa murcha dentro da água que ele continha. A princípio a flor flutuou, parecendo não absorver humidade alguma. Em breve, contudo, começou a tornar-se perceptível uma modificação singular. As pétalas secas e murchas agitaram-se e adquiriram uma tonalidade mais viva, como se a flor ressuscitasse de um sono que se diria eterno; a haste delgada e os rebentos da folhagem tornaram-se verdes; e eis que a rosa envelhecida após meio século aparecia tão fresca como no dia em que Silvia Ward a dera ao noivo. Ainda não estava inteiramente desabrochada, porque algumas das suas delicadas pétalas encarnadas se enrolavam modestamente em volta da corola húmida, dentro da qual brilhavam duas ou três gotas de orvalho.



- Não há dúvida que se trata de uma tramóia muito hábil - comentaram os amigos do médico. Disseram-no, porém, despreocupadamente, pois já haviam presenciado milagres maiores feitos por prestidigitadores de feiras. - Explique-nos como se realiza.



- Nunca ouviram falar na Fonte da Juventude? - perguntou o Dr. Heidegger. - Aquela que Ponce De León, o famoso aventureiro espanhol, foi procurar há dois ou três séculos?



- Mas ele chegou a encontrá-la? - inquiriu a viúva Wycherly.



- Não - respondeu o Dr. Heidegger -, porque nunca a procurou onde devia. A famosa Fonte da Juventude, se na verdade estou bem informado, encontra-se na parte sul da península da Florida, não longe do lago Macaco. A nascente está tapada por algumas magnólias gigantes que, embora seculares, se conservam viçosas como violetas, graças às virtudes desta água maravilhosa. Um conhecido meu, sabendo da minha curiosidade por tais assuntos, enviou-me a água que vêem neste vaso.



- Ah! - troçou o coronel Killigrew, que não acreditara numa só palavra da história do médico. - E qual será o efeito deste fluído no corpo humano?



- Poderá avaliá-lo o senhor mesmo, meu caro coronel - respondeu o Dr. Heidegger -; e a todos vós, respeitáveis amigos, vos convido a servir-vos deste líquido prodigioso, tanto quanto precisardes para rejuvenescerdes. Por mim, como me foi difícil atingir esta idade, não tenho pressa em rejuvenescer. Com a vossa permissão, portanto, limitar-me-ei a observar a marcha da experiência.



Enquanto falava, o Dr. Heidegger enchera as quatro taças com a água da Fonte da Juventude. Estava impregnada, aparentemente, de um gás efervescente, pois bolhas pequenas subiam continuamente à superfície, formando aí uma espuma prateada. Como o líquido exalava um perfume agradável, os velhos não duvidavam que ele possuía propriedades estimulantes e reconfortantes. E, embora extremamente cépticos quanto ao seu poder de rejuvenescimento, estavam decididos a bebê-lo imediatamente. O Dr. Heidegger, porém, rogou-lhes que esperassem um momento.



- Antes de beberdes, meus velhos amigos - disse -, seria bom que, com a experiência de uma vida para vos orientar, estabelecêsseis umas quantas regras gerais para vos guiardes, ao passar uma segunda vez pelos perigos da juventude. Pensai que vergonhoso pecado seria se, com essa vantagem, não vos tornásseis modelos de virtude e sabedoria aos olhos de todos os jovens!



Os quatro veneráveis amigos do médico responderam apenas com uma gargalhada fraca e trémula, tão ridícula acharam a ideia de que, sabendo quão de perto o arrependimento se segue aos erros cometidos, poderiam extraviar-se de novo.



- Bebam, então - convidou o médico, fazendo uma vénia. - Regozijo-me por tê-los escolhido para a minha experiência.



Eles levaram as taças aos lábios com as mãos trémulas. O líquido, se de facto possuía as propriedades que o Dr. Heidegger lhe atribuía, não poderia ter sido aplicado em quatro seres humanos mais necessitados. Parecia não terem jamais conhecido o que fosse a juventude ou o prazer, e serem antes o resultado de um erro da natureza e sempre haverem sido criaturas encanecidas, decrépitas, secas e miseráveis, que ali estavam sentadas, todas curvadas, à volta da mesa do médico, já sem ânimo suficiente, no corpo e no espírito, nem sequer para cobrarem alento com a perspectiva de rejuvenescerem. Beberam a água e tornaram a colocar as taças sobre a mesa.



Houve, sem dúvida, uma melhoria quase imediata no aspecto do grupo - não diferente da que teria produzido um copo de vinho generoso - juntamente com um súbito rubor de excitação, que lhes fez resplandecer o rosto. Espalhou-se-lhes pelas faces uma tonalidade saudável, substituindo o tom da cinza que lhes dava um aspecto cadavérico. Fitaram-se uns aos outros e acreditaram que, realmente, um estranho poder mágico começara a apagar os traços profundos e tristes que o Tempo há muito lhes vinha gravando no rosto. A viúva Wycherly compôs a touca, como se de novo se sentisse quase uma jovem.



- Dê-nos mais um pouco desta água maravilhosa! - gritaram ansiosamente. - Estamos mais novos, mas ainda demasiado velhos. Depressa, dê-nos mais.



- Calma, calma! - aconselhou o Dr. Heidegger que, sentado, observava a experiência com tranquilidade filosófica. - Demorastes tanto tempo a envelhecer que vos devíeis sentir satisfeitos por rejuvenescerdes em meia hora! Mas a água está à vossa disposição.



Tornou a encher-lhes as taças com o líquido da juventude, e no vaso ainda sobrou o suficiente para fazer voltar à idade dos seus netos metade da gente da velha cidade. O líquido borbulhava ainda à superfície e já os quatro convidados do médico arrebatavam os copos de cima da mesa, despejando-os de um trago. Seria ilusão? Apenas lhes escorria pela garganta, e parecia ter já operado uma modificação em todo o organismo. Os olhos tornaram-se-lhes mais claros e brilhantes; entre os cabelos prateados apareceu um tom mais escuro; sentados à volta da mesa estavam três cavalheiros de meia-idade e uma mulher pouco para além da primavera da vida.



- Minha querida, está encantadora! - gritou o coronel Killigrew, cujos olhos se haviam fixado no rosto da dama, enquanto as sombras da idade nele se desvaneciam, qual escuridão cedendo ao rubor do amanhecer.



A bela viúva sabia, desde há muito, que os galanteios do coronel Killigrew nem sempre correspondiam à verdade; por isso, ergueu-se e correu para o espelho, temendo ir ainda deparar com o rosto de uma velha. Entretanto os três homens comportavam-se de maneira a provar que a água da Fonte da Juventude possuía propriedades inebriantes; a não ser que, na verdade, a sua jovialidade de espírito fosse apenas uma vertigem ligeira, causada pela emoção do súbito rejuvenescimento. O espírito do Sr. Gascoigne parecia divagar sobre assuntos políticos, mas não se poderia determinar facilmente se se referiam ao passado, ao presente ou ao futuro, visto nos últimos cinquenta anos terem estado em voga as mesmas ideias e frases. Compunha frases inflamadas acerca do patriotismo, da glória nacional e dos direitos do povo; em seguida, comentava qualquer assunto perigoso, num cochichar astuto e ambíguo, tão cautelosamente, que até mesmo à sua própria consciência parecia não revelar o segredo; depois, começava a falar de novo com inflexões pausadas e num tom de deferência profunda, como se ouvidos reais estivessem a escutar os seus períodos bem construídos. Durante todo este tempo, o coronel Killigrew cantarolava uma canção jovial, fazendo tilintar a taça em compasso com a música, enquanto os olhos se lhe desviavam na direcção da figura jovem da viúva Wycherly. No outro lado da mesa, o Sr. Medbourne estava embrenhado em cálculos de dólares e cêntimos, que entremeava curiosamente com um projecto para fornecer gelo à Índia, atrelando uma parelha de baleias aos icebergues polares.



Quanto à viúva Wycherly, essa permanecia em frente do espelho, namorando a sua própria imagem, para a qual sorria tolamente, saudando-a como ao amigo que mais amasse no mundo. Por vezes aproximava-se mais do espelho para verificar se uma ou outra ruga ou pé-de-galinha, muito seus conhecidos, tinham realmente desaparecido. Certificou-se, também, de que a neve dos seus cabelos já se derretera totalmente, podendo assim retirar sem perigo a touca respeitável. Por fim, afastando-se rapidamente, aproximou-se da mesa em passo saltitante.



- Caro doutor - gritou -, por favor, dê-me mais uma taça!



- Pois não, querida senhora, pois não! - retorquiu amavelmente o médico. - Veja! Já tinha enchido outra vez as taças.



De facto lá estavam as quatro taças, cheias até às bordas dessa água maravilhosa cuja espuma delicada, fervendo à superfície, tinha o brilho trémulo dos diamantes. Entretanto, como a noite se aproximava, ficava a pouco e pouco mais escuro do que nunca; mas um resplendor suave e parecido com o luar que cintilava no interior do vaso envolvia os quatro convidados e a figura venerável do médico. Este estava sentado numa cadeira de braços, de espaldar alto e artisticamente esculpida, com respeitável dignidade, que quadraria bem até ao próprio Pai Tempo, cujo poder jamais foi discutido, a não ser por este grupo afortunado. Mesmo enquanto engoliam o terceiro copo de água da Fonte da Juventude se sentiam quase aterrados pela expressão misteriosa do seu rosto.



Momento depois, contudo, a torrente alegre da juventude percorreu-lhe as veias. Estavam agora nos dias felizes da mocidade. A idade, com a sua série triste de cuidados, mágoas e doenças, era recordada apenas como um pesadelo de que haviam despertado alegremente. A frescura da alma, tão cedo perdida, e sem a qual as sucessivas mutações da vida não passavam de uma sucessão de cenas descoloridas, lançou de novo o seu encanto sobre todas as suas perspectivas. Sentiam-se como seres recém-criados, num mundo recém-criado.

- Somos jovens! Somos jovens! - gritaram exultantes.

A juventude, do mesmo modo que a idade provecta, apagara as características profundamente vincadas da meia-idade, e a todos da mesma forma. Formavam um grupo de jovens alegres, quase enlouquecidos pelo júbilo exuberante próprio dos seus anos. A consequência mais curiosa da sua jovialidade era o impulso para troçarem da enfermidade e decrepitude de que haviam sido vítimas. Riam alto dos fatos antiquados, dos casacos largos e dos coletes escorridos que usavam os três jovens, e da touca e do vestido, já em desuso, da viçosa rapariga. Um deles simulou manquejar pelo quarto como um avô artrítico, outro encavalitou um par de óculos no nariz e fingiu esquadrinhar as páginas de letras negras do livro de magia; o terceiro sentou-se numa cadeira de braços e procurou imitar a dignidade respeitável do Dr. Heidegger. Todos gritaram alegremente e começaram a saltar pelo quarto. A viúva Wycherly - se a uma jovial donzela assim se pode chamar - encaminhou-se para a cadeira do médico, com uma expressão alegremente maliciosa na face rosada.



- Doutor, meu querido amigo - exclamou -, levante-se e venha dançar comigo! - E os quatro jovens riram então mais alto do que nunca ao pensarem na figura ridícula que o pobre velho médico faria.



- Peço-lhe que me desculpe - respondeu o médico calmamente. - Sou velho e reumático, e os meus dias de dançarino terminaram há muito. Creio, porém, que qualquer destes jovens cavalheiros se sentirá feliz com um par tão adorável.

- Dance comigo, Clara! - pediu o coronel Killigrew.

- Não, não, eu é que serei o seu par! - gritou o Sr. Gascoigne.

- Ela prometeu casar-se comigo há cinquenta anos! - exclamou o Sr. Medbourne.

Juntaram-se todos à sua volta. Um deles tomou-lhe as mãos apaixonadamente; outro passou-lhe o braço à volta da cintura; e o terceiro afundou as mãos entre as ondas de cabelo brilhante que se amontoavam sob a touca. Corando, arquejando, lutando, ralhando, rindo, com o seu hálito quente bafejando-lhes os rostos, alternadamente, ela procurou libertar-se, permanecendo contudo entre o triplo abraço. Formavam o mais encantador dos quadros de rivalidade juvenil, cujo prémio fosse uma beleza feiticeira. Todavia, por uma ilusão estranha devida à escuridão do compartimento e aos vestidos antiquados que continuavam a usar, dir-se-ia que o espelho refletia as figuras de três velhos cavaleiros, enrugados e de cabelos brancos, disputando ridiculamente por causa de uma dama feia, esquelética e cheia de rugas.



Mas eles eram jovens: assim lho provavam as suas paixões avassaladoras. Inflamados até à loucura pela garridice da jovem viúva, que nem concedia nem negava por completo os seus favores, os três rivais começaram a trocar olhares de ameaça. Não deixando de segurar a sua bela presa, agarraram ferozmente os pescoços uns dos outros. Ao lutarem de um lado para o outro, derrubaram a mesa, e o vaso partiu-se em mil pedaços. A preciosa água da Fonte da Juventude correu pelo chão, num rio cintilante, humedecendo as asas de uma borboleta, que, já velha, tinha ali pousado para morrer. O insecto esvoaçou levemente pelo quarto e foi pousar nos alvos cabelos do Dr. Heidegger.



- Então, então, cavalheiros! Então, Sr.a Wycherly! - protestou o médico. - A que se deve toda esta algazarra?



Eles aquietaram-se, estremecendo: parecia que o Tempo os chamava da sua juventude radiante bem para o fundo do vale da vida, escuro e gelado. Olharam para o Dr. Heidegger, sentado na sua cadeira de braços, segurando na mão a rosa velha de meio século, que ele salvara dentre os fragmentos do vaso despedaçado. Fez um sinal com a mão e os quatro desordeiros retomaram os seus lugares, sem pressas, porque o exercício violento cansara-os, embora fossem jovens.



- Pobre rosa da minha querida Silvia! - murmurou o Dr. Heidegger, segurando-a contra a luz do entardecer. - Parece que vai murchar de novo.



E era verdade. Enquanto o grupo a fitava, a flor continuava a murchar, até que ficou tão seca e frágil como quando o médico a colocara pela primeira vez dentro do vaso. Então, o Dr. Heidegger sacudiu umas gotas de água que tinham ficado agarradas às pétalas.



- Gosto tanto dela assim! É como se estivesse viçosa! - observou, apertando a rosa murcha contra os lábios ressequidos. Enquanto falava, a borboleta veio cair-lhe na cabeça, tombando seguidamente sobre o soalho.



Os convidados estremeceram de novo. Um frio estranho, que eles não sabiam dizer se provinha do corpo ou da alma, apossava-se gradualmente deles. Olhavam-se uns aos outros e imaginavam que cada minuto que passava lhes arrebatava um encanto, deixando uma ruga profunda onde anteriormente não existia nenhuma. Seria ilusão? Seria possível que as alterações do Tempo se produzissem em tão curto espaço? Seriam eles agora quatro velhos, sentados ao pé do seu velho amigo Dr. Heidegger?



- Ficámos velhos, outra vez, tão depressa? - gritaram tristemente.



Na realidade, assim acontecera. A Água da Juventude possuía apenas um poder ainda mais passageiro do que o do vinho. A euforia que provocara desvanecera-se. Sim! Eram outra vez velhos. Num impulso trémulo, que provava que era ainda mulher, a viúva cobriu a cara com as mãos descarnadas e desejou que a tampa do caixão lha escondesse imediatamente, pois jamais voltaria a ser bela.



- Sim, meus amigos, sois velhos outra vez. - confirmou o Dr. Heidegger. - E vede! A Água da Juventude está toda derramada no chão. Bem, não o lamento, porque, embora a fonte corresse à minha porta, não me debruçaria para molhar os lábios. Não, ainda que o seu efeito durasse anos e não momentos. Foi esta a lição que aprendi convosco.



Mas a lição não aproveitou aos quatro amigos do médico. Resolveram imediatamente fazer uma peregrinação à Florida e beber na Fonte da Juventude, de manhã, à tarde e à noite.



NOTA - Fui acusado, numa crítica inglesa recente, de ter plagiado a ideia desta história de um capítulo de um dos romances de Alexandre Dumas. Não há dúvida que houve plágio, fosse de um lado ou de outro; porém, como a minha história foi escrita há mais de vinte anos, e como o romance é de data muito mais recente, regozijo-me ao pensar que o Sr. Dumas me deu a honra de se apropriar de uma das concepções fantasistas dos meus primeiros tempos. Dou-lha de bom grado. Não é este o caso único em que o grande romancista francês exerceu o privilégio dos génios de confiscar a propriedade intelectual de escritores menos famosos, para seu próprio uso e proveito.



Nathaniel Hawthorne (Salem, 4 de Julho de 1804 - Plymouth, 19 de Maio de 1864) foi um escritor norte-americano, considerado o primeiro grande escritor dos Estados Unidos e a maior contista de seu país, sendo o responsável por tornar decisivamente o puritanismo americano um dos temas centrais da tradição gótica.



Disponível em http://www.logoslibrary.eu/pls/wordtc/new_wordtheque.download_files?zip=aaacmm&lg=pt&nf=11320 Acesso 04/03/10

"Venha ver o pôr-do-Sol", de Lygia Fagundes Telles



Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalha¬das sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estu¬dante.

- Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sa¬patos.

- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele che¬garia aqui em cima.

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância... quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?

- Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando o lenço na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?!

- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço, rin¬do. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?

- Podia ter escolhido um outro lugar, não? - Abrandara a voz. - E que é isso ai? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mor¬tos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo - acrescen¬tou, lançando um olhar 'às crianças rodando na sua ciranda.

Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.

- Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o pro¬grama?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

- Conheço bem tudo isso, minha gente está enter¬rada aí. Vamos entrar e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

- Ver o pôr-do-sol!... Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me ator¬menta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino em falta.

- Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu aparta¬mento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fecha¬dura...

- E você acha que eu iria?

- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. Aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente aperta¬dos. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta: não era nesse instante tão jovem como aparen¬tava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. - Você fez bem em vir.

- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

- Mas eu pago.

- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

- Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentís¬simo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não su¬porto enterros.

- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepul¬turas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos enegrecidos como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita ao som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava con¬duzir como uma criança. As vezes mostrava certa curiosi¬dade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega.

- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa incerteza. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

- Ele é tão rico assim?

- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repenti¬namente ficou envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retar¬dou o passo.

- Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio glingue-glongue... Apesar de tudo, tenho às vezes sau¬dade daquele tempo. Que ano aquele. Palavra que quan¬do penso não entendo até hoje como agüentei tanto. Um ano!

- É que você tinha lido A Dama das Camélias, fi¬cou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?

- Nenhum - respondeu ela franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades. - Fez um muxoxo. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha bro¬tando insólita de dentro da fenda - o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim.

- Deu-lhe um beijo rápido na face. - Chega, Ricardo, quero ir embora.

- Mais alguns passos...

- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! Olhou para trás - Nunca andei tanto Ricardo, vou ficar exausta.

- A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele empurrando a para a frente Dobrando esta alameda fica o jazigo da minha gente e de lá que se vê o pôr-do-sol.- E tomando a pela cintura. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os do¬mingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por ai, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

- Sua prima também?

- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, tão brilhantes.

- Vocês se amaram?

- Ela me amou. Foi a única criatura que... - Fez um gesto. - Enfim, não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devol¬veu-o.

- Eu gostei de você, Ricardo.

- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

- Esfriou, não? Vamos embora.

- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquiria a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre Os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pen¬dendo como farrapo. de um manto que alguém colocara sobre os ombros de Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naquelas ruínas.

- Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira.

- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpi¬nho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério e precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

- E lá embaixo?

- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. - A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se para ver melhor.

- Todas essas gavetas estão cheias?

- Cheias?... - Sorriu. - Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, em¬butido no centro da gaveta.

Ela cruzou OS braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

- Vamos Ricardo, vamos.

- Você está com medo.

- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.

- A priminha Maria Camila. Lembro até do dia em que tirou esse retrato. Foi duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... - Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impres¬sionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbar¬rar em nada.

- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxer¬gando...

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à compa¬nheira.

- Pegue, dá para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos.

- Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... - Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Camila, nascida em vinte de maio de mil e oitocen¬tos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou a olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.

- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu menti¬roso! Brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, ime¬diatamente! - ordenou, torcendo o trinco. - Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastan¬do devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadís¬simo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

- Boa-noite, Raquel.

- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não...

Voltado ainda para ela, Ricardo recuou até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.

- Boa-noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

- Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

- NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remo¬tos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brin¬cavam de roda.





1958



In “Mistérios”, Nova Fronteira,

4ª Edição, 1981.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Washington Irving - Rip Van Winkle


Quem quer que tenha subido pelo rio Hudson deve lembrar-se das montanhas Kaatskill, que se avistam ao longe. Cada mudança de estação e de tempo e cada hora do dia provocam alguma mudança nas cores e nos contornos mágicos dessas montanhas. Todas as boas esposas da região as tomam como barômetros, pois, de acordo com sua aparência, conseguem prever o tempo.

Ao pé dessas belas montanhas, o viajante pode avistar fumaça se erguendo lentamente de uma aldeia cujos telhados brilham por entre as árvores. É uma aldeia muito antiga, que foi fundada por algum colonizador holandês.

Nessa aldeia e em uma dessas casas (que, a bem da verdade, eram muito antigas e castigadas pelo mau tempo), vivia, há muitos anos, quando os Estados Unidos ainda eram uma província da Grã– Bretanha, um homem simples e bom chamado Rip Van Winkle. Era um vizinho exemplar e um marido obediente, completamente dominado pela mulher. Certamente devia a essa última circunstância a brandura de alma que lhe conquistava uma popularidade geral, pois são mais aptos a serem dóceis e conciliadores fora, esses homens que estão sob a disciplina de uma víbora dentro de casa.

Rip Van Winkle era o grande favorito entre todas as boas esposas da aldeia; as crianças também gritavam de alegria sempre que ele se aproximava. Assistia a seus jogos, fabricava seus brinquedos, ensinava-lhes a soltar pipa e atirar bolinhas de gude e lhes contava longas histórias de fantasmas, bruxas e índios. Aonde quer que ele fosse, era cercado por um bando deles, pendurando-se nas suas roupas, subindo às suas costas e lhe pregando mil peças impunemente. Nem um cachorro sequer, em toda a redondeza, latia para ele.

O grande defeito de caráter de Rip era uma insuperável aversão a qualquer tipo de trabalho útil. Não era falta de assiduidade ou perseverança, pois ele seria capaz de sentar numa rocha úmida, com uma vara, e ficar pescando o dia todo, sem uma queixa, mesmo que sua isca não fosse mordida nem uma só vez. Carregaria ao ombro sua espingarda por horas seguidas, caminhando por bosques e pântanos, subindo e descendo morros, para atirar em alguns poucos esquilos ou pombas selvagens. Jamais se recusaria a ajudar um vizinho, mesmo nas tarefas mais duras. As mulheres da aldeia, também, tinham o costume de recorrer a ele para pequenos serviços que seus maridos menos prestativos não fariam por elas. Numa palavra, Rip estava sempre pronto para cuidar dos negócios de quem quer que fosse, exceto dos dele próprio. Mas cumprir os deveres para com a família e manter sua fazenda em ordem, ele achava impossível.

De fato, dizia que não adiantava nada trabalhar em sua fazenda: era o pior pedaço de terra de toda a região. Tudo ali dava errado e daria errado apesar dele. Suas cercas estavam sempre caindo aos pedaços; sua vaca sempre se perdia ou ia parar na plantação de couve. A erva - daninha certamente crescia mais rápido em suas terras do que em nenhum outro lugar. A chuva fazia questão de cair exatamente quando ele tinha algum trabalho para fazer ao ar livre. Assim, a propriedade que herdara do pai, diminuindo até ficar reduzida a pouco mais que um simples terreno com milho e batatas, era a fazenda em piores condições de toda a redondeza. Seus filhos também andavam maltrapilhos e selvagens como se não tivessem pais. Seu filho Rip, um moleque igualzinho a ele, fazia prever que ia herdar-lhe os hábitos, junto com as suas roupas velhas. Viam-no geralmente correndo como um potro atrás da mãe, vestido com um velho par de calças do pai, que ele tinha muita dificuldade em segurar com uma mão.

Rip Van Winkle, porém, era um desses felizes mortais bem humorados, sempre de bem com a vida, comendo pão branco ou preto: o que se pudesse conseguir com menor esforço ou dificuldade. Preferia definhar com um centavo a trabalhar por uma libra. Se deixado a si mesmo, ele teria passado a vida a assobiar, com perfeita satisfação; mas sua mulher vivia resmungando nos seus ouvidos sobre sua preguiça, sua negligência e a ruína a que ele estava levando sua família. De manhã, à tarde e à noite, sua língua estava em ação sem trégua, reclamando de tudo o que ele dizia ou fazia. Rip só tinha um modo de responder: encolhia os ombros, balançava a cabeça, erguia os olhos, mas não dizia nada. Isso, porém, provocava uma nova enxurrada de queixas e só lhe restava, então, ir para fora de casa — o único lugar que realmente pertence a um marido dominado pela esposa.

O único a tomar partido de Rip em seu lar era seu cachorro Wolf, tão tiranizado pela Senhora Van Winkle quanto seu dono, pois aquela os via como companheiros de preguiça e olhava torto

para Wolf como se ele fosse a causa das perambulagens freqüentes do marido. A verdade é que Wolf era, sob todos os aspectos, um cachorro digno; era corajoso — mas que coragem podia enfrentar os constantes e esmagadores ataques de uma língua de mulher? Assim que Wolf entrava na casa, baixava a crista, com o rabo entre as pernas, olhando atentamente para a senhora Van Winkle. Ao primeiro sacudir de um cabo de vassoura ou de uma concha, saía correndo para a porta, latindo.

Foi ficando pior para Rip Van Winkle com o passar dos anos de casamento. Um temperamento azedo jamais se abranda com o tempo, e uma língua afiada é o único instrumento cortante que se torna mais agudo com o uso constante. Por muito tempo, ele costumava consolar-se, ao ser expulso de casa, freqüentando uma espécie de clube dos sábios, filósofos e outros personagens preguiçosos da aldeia. Suas sessões ocorriam num banco na frente de uma pequena pousada. Ali costumavam se sentar à sombra, durante um longo e preguiçoso dia de verão, conversando distraidamente sobre mexericos da aldeia ou contando histórias intermináveis e tediosas sobre coisa nenhuma. Se lhes caía nas mãos algum jornal deixado por um viajante de passagem, era lido arrastadamente por Derrick Van Bummel, o mestre-escola, um homenzinho vivo e instruído, que não se deixava assustar pela palavra mais gigantesca do dicionário. Como deliberavam sabiamente sobre acontecimentos públicos alguns meses depois

que eles tinham ocorrido!

As opiniões dessa liga eram totalmente controladas por Nicholas Vedder, um patriarca da aldeia e dono da pousada, a cuja porta ele permanecia sentado de manhã até a noite, só se movendo para evitar o sol e continuar sob a sombra de uma grande árvore. Assim, os vizinhos podiam saber que horas eram a partir de seus movimentos, de uma forma tão precisa quanto consultando um relógio de sol. É verdade que raramente escutavam-no a falar, mas fumava seu cachimbo sem parar. Seus partidários, porém, compreendiam-no perfeitamente o que ia pela sua cabeça, de acordo com o modo como ele fumava.

Mas até mesmo desse refúgio o desafortunado Rip foi por fim expulso pela megera da sua esposa, que irrompeu de repente na tranqüilidade da assembléia e chamou todos os seus membros de inúteis. Nem aquela venerável personagem, o próprio Nicholas Vedder, foi poupado da língua atrevida dessa terrível víbora, que o acusava de encorajar os hábitos preguiçosos do marido.

O pobre Rip se viu por fim quase reduzido ao desespero; e sua única alternativa para escapar do trabalho da fazenda e da gritaria da mulher era pegar sua espingarda e perambular pelas florestas. Aqui ele algumas vezes se sentava ao pé de uma árvore e dividia o conteúdo de sua bolsa com Wolf, com quem simpatizava como um companheiro de sofrimento. “Pobre Wolf”, dizia, “sua dona dá a você uma vida de cão, mas não se preocupe, meu amigo: enquanto eu viver, você nunca sentirá falta de um companheiro para ficar a seu lado!” Wolf abanava o rabo, olhava atentamente para o rosto do seu dono e, se cães podem sentir piedade, eu acredito realmente que ele demonstrava os mesmos sentimentos do dono com todo seu coração.

Numa dessas longas andanças, num belo dia de outono, tinha escalado, sem dar por isso, uma das partes mais altas das montanhas Kaatskill. Estava entretido em seu esporte favorito — caçar esquilos, e a solidão silenciosa das rochas tinha ecoado repetidamente os estampidos de sua espingarda. Ofegante e cansado, lançou-se sobre uma colina verde, à beira de um precipício. De uma abertura entre as árvores ele podia avistar toda a região mais abaixo, a grande distância. Viu o altivo Hudson, longe, longe, movendo-se em seu curso silencioso mas majestoso.

Do outro lado, avistou um vale profundo, selvagem, solitário e eriçado; o fundo estava repleto de pedaços de rochas e escassamente iluminado pelos reflexos do sol poente. Por algum tempo Rip permaneceu ali, deitado, meditando sobre aquela cena. A noite estava avançando pouco a pouco. As montanhas começavam a lançar suas sombras azuis sobre os vales. Ele viu que escureceria muito antes de poder chegar à aldeia e suspirou profundamente ao pensar nas ameaças da Senhora Van Winkle que ele teria de enfrentar.

A ponto de descer, ouviu uma voz chamando-o: “Rip Van Winkle! Rip Van Winkle!” Olhou ao redor, mas não conseguiu ver nada além de um corvo num vôo solitário através da montanha. Pensou que sua imaginação o enganara e se preparou de novo para descer, quando ouviu o mesmo grito soar através do calmo ar da noite: “Rip Van Winkle! Rip Van Winkle!” No mesmo momento, Wolf eriçou os pêlos das costas e, dando um fraco rosnado, refugiou-se bem junto do dono, olhando assustado para o vale. Rip agora sentia uma vaga apreensão. Olhou ansiosamente na mesma direção e percebeu uma figura estranha escalando vagarosamente as rochas e curvada sob o peso de algo que carregava às costas. Ele ficou surpreso ao ver um ser humano naquele lugar solitário e deserto, mas julgando que era algum dos vizinhos precisando de sua ajuda, correu a oferecê-la.

Ao chegar mais perto, ficou ainda mais espantado com a singularidade da aparência do estranho. Era um velho baixo, de fartos cabelos eriçados e barba grisalha. Vestia-se à antiga moda holandesa, com uma jaqueta e vários calções. Carregava aos ombros um barril, que parecia cheio de licor, e fazia sinais a Rip para que ele se aproximasse e ajudasse com o fardo. Embora ressabiado e desconfiado dessa nova amizade, Rip o fez com sua presteza habitual. Ajudando-se um ao outro, subiram um barranco, que parecia o leito seco de uma corrente da montanha. Quando escalavam, Rip ouviu um barulho como que de um trovão distante. Parou por um momento, mas supondo que era um desses trovões que anunciam uma pancada de água, prosseguiu. Chegaram a uma cavidade que parecia um pequeno anfiteatro, cercado por precipícios e árvores. Durante todo o tempo, Rip e seu companheiro tinham subido a montanha em silêncio. Embora o primeiro se perguntasse admirado qual a razão de se carregar um barril de licor montanha acima, havia algo estranho e incompreensível no desconhecido que inspirava medo e impedia a intimidade da conversa.

Ao entrarem no anfiteatro, apareceram outros motivos de espanto. No centro havia um grupo de homens esquisitos jogando um antigo jogo de bola holandês. Vestiam, todos, roupas estranhas. Seus rostos, também, eram especiais. Um tinha uma grande barba, rosto cheio e olhinhos de porco. A face de um outro parecia consistir inteiramente num nariz, encimado por um chapéu branco com uma pena vermelha de galo. Todos tinham barba, de vários formatos e cores. Havia um que parecia ser o líder. Era um velho forte; tinha um chapéu com penas, meias vermelhas e sapatos de salto alto, com rosas. O grupo em seu conjunto lembrava a Rip as figuras de uma velha pintura flamenga, que ele vira na sala de Dominic Van Shaick, o vigário da aldeia, trazida da Holanda no tempo da colonização.

O que parecia particularmente estranho a Rip era que, embora aquelas pessoas estivessem se divertindo, mantinham no rosto uma expressão das mais sérias, o mais misterioso silêncio: era a diversão mais melancólica que ele já tinha testemunhado. Nada interrompia o silêncio da cena, exceto o ruído das bolas, que, ao rolar, ecoavam através das montanhas como barulho de trovão. Quando Rip e seu companheiro se aproximaram, eles de repente desistiram do seu jogo e o encararam com um olhar tão fixo de estátua e com rostos tão estranhos e sem vida, que seu coração disparou e seus joelhos se chocaram entre si. Seu companheiro esvaziava agora o conteúdo do barril em garrafões e fazia sinais para que ele servisse o grupo. Obedeceu com medo e tremendo; eles beberam o licor em profundo silêncio e retornaram ao jogo.

Pouco a pouco o medo e a apreensão de Rip diminuíram. Até se aventurou, quando nenhum olhar estava fixado nele, a saborear o licor, que tinha o gosto das melhores bebidas holandesas. Era, por natureza, uma alma sedenta e logo se viu tentado a repetir a dose. Um gole leva a outro, e ele repetiu suas visitas ao garrafão tantas vezes que, por fim, seus sentidos se enfraqueceram, seus olhos se turvaram, sua cabeça foi gradualmente tombando e ele caiu num sono profundo. Ao acordar, descobriu-se na colina verde de onde tinha visto pela primeira vez o velho que vinha subindo a montanha. Esfregou os olhos — era uma esplêndida manhã ensolarada. Pássaros saltitavam e cantavam por entre a mata. “Com certeza”, pensou Rip, “não devo ter dormido aqui a noite toda”. Recordou o que acontecera antes de adormecer. O homem estranho com um barril de licor, o barranco, o retiro selvagem entre as rochas, o triste jogo de bola, o garrafão. “Oh!, aquele garrafão! Maldito garrafão!”, pensou Rip, “quantas desculpas eu devo pedir à Senhora Van Winkle!”

Procurou por sua arma, mas em seu lugar encontrou apenas uma espingarda toda corroída de ferrugem. Suspeitava agora de que os homens da montanha tinham lhe pregado uma peça: depois de o embebedar com o licor, tinham roubado sua espingarda. Também Wolf tinha desaparecido, mas bem podia ter corrido atrás de um esquilo ou de uma perdiz. Assobiou chamando-o e gritou seu nome, mas tudo em vão; os ecos repetiam seu assobio e grito, mas não se viu nenhum cachorro.

Decidiu revisitar a cena do dia anterior e, se encontrasse alguém do jogo, pedir seu cachorro e sua espingarda. Ao se erguer, notou que suas juntas estavam rígidas e mais fracas do que o normal. “Essas camas de montanha não são comigo”, pensou Rip, “e se eu ficar com reumatismo, terei de agüentar a Senhora Van Winkle por um bom tempo”. Com alguma dificuldade, desceu ao barranco onde tinha estado com o companheiro na véspera. Mas, para seu espanto, havia agora ali uma corrente de água da montanha, saltando de rocha a rocha.

Por fim, chegou ao que era o anfiteatro, mas não encontrou nenhum sinal da escavação que havia antes. As rochas apresentavam uma parede alta, intransponível, sobre a qual corriam as águas, rodeadas pelas sombras de uma floresta. Aqui, então, o pobre Rip foi obrigado a parar. De novo assobiou e chamou pelo cão, inutilmente. Que deveria fazer? A manhã já ia alta, e Rip, sentindo falta do café da manhã, sentia-se faminto. Lamentava deixar seu cachorro e sua espingarda, temia encontrar a esposa, mas não podia morrer de fome nas montanhas. Sacudiu a cabeça, pôs no ombro a espingarda enferrujada e, com o coração cheio de preocupação e ansiedade, dirigiu seus passos para casa. Ao se aproximar da aldeia, encontrou algumas pessoas, mas nenhuma conhecida, o que o surpreendeu um bocado, pois achava que conhecia todos na região. Também suas roupas eram de um tipo diferente daquele com o qual ele estava acostumado. Todos olhavam fixamente para ele, com os mesmos sinais de espanto, e coçavam o queixo. A repetição constante desse gesto levou Rip a fazer involuntariamente o mesmo e foi quando, para sua surpresa, descobriu que sua barba tinha crescido um pé! (equivalente a 33 cm)

Agora, tinha chegado aos limites da aldeia. Um grupo de crianças desconhecidas correu atrás dele, gritando e apontando sua barba grisalha. Também os cães, que ele não reconheceu, latiam para ele à sua passagem. Toda a aldeia tinha mudado. Estava maior e mais povoada. Havia fileiras de casas que ele jamais tinha visto antes e as que lhe eram familiares tinham desaparecido. Havia nomes desconhecidos sobre as portas, rostos desconhecidos às janelas; tudo era desconhecido. Duvidava do seu próprio juízo; começou a achar que talvez ele e o mundo a sua volta estivessem enfeitiçados. Certamente esta era sua aldeia natal, que ele deixara na véspera. Ali se erguiam as montanhas Kaatskill, ali corria o prateado Hudson. Rip estava dolorosamente perplexo. “Aquele garrafão de ontem à noite”, pensou, “perturbou a minha pobre cabecinha!”

Foi com alguma dificuldade que encontrou o caminho para sua casa, da qual ele se aproximou com medo silencioso, esperando a cada momento ouvir a voz estridente da Senhora Van Winkle. Encontrou a casa em ruínas: o teto caído, as janelas arrebentadas e as portas fora das dobradiças. Um cão meio morto de fome, que se parecia com Wolf, vagava por ali. Rip chamou-lhe pelo nome, mas o vira-lata rosnou, mostrou os dentes e foi embora. “Até o meu próprio cachorro”, suspirou o pobre Rip, “esqueceu-se de mim!”

Entrou na casa. Estava vazia e, segundo parecia, abandonada. Chamou em voz alta pela esposa e filhos — os aposentos desertos ressoaram com sua voz por um momento e, então, tudo voltou ao silêncio de antes.

Correu para o seu velho refúgio, a pousada da aldeia — mas ela também tinha desaparecido. Estava em seu lugar uma construção de janelas largas, sobre cuja porta estava pintado: “Hotel União, de Jonathan Doolittle”. Ao invés da grande árvore que costumava proteger a calma pousada holandesa, havia um mastro com uma bandeira; nela, uma estranha mistura de estrelas e listras — tudo isso era incompreensível e estranho. Havia, como sempre, uma multidão de pessoas perto da porta, mas nenhuma que Rip reconhecesse. Até o caráter do povo parecia mudado. Ao invés da calma habitual, as pessoas eram apressadas e agitadas. Procurou em vão pelo sábio Nicholas Vedder ou por Van Bummel, o mestre-escola.

Rip, com sua longa barba grisalha, sua espingarda enferrujada, sua roupa grosseira logo atraiu a atenção dos homens do hotel. Cercaram-no, olhando-o dos pés à cabeça com grande curiosidade. Perguntaram em quem ele tinha votado. Rip arregalou os olhos, sem entender nada. Um homem puxou-o pelo braço e perguntou se ele era federalista ou democrata. Rip não conseguia entender a pergunta. Por fim um velho lhe perguntou, em tom grave, o que ele fazia numa eleição com uma arma ao ombro e uma multidão a segui-lo e se ele queria liderar uma revolta na aldeia.

“Ai!, senhores”, exclamou Rip, “eu sou um pobre coitado, pacífico, natural deste lugar”. E o pobre homem assegurou, humildemente, que não pretendia armar confusão mas que viera ali apenas para procurar alguns dos seus vizinhos, que costumavam reunir-se naquele lugar.

“Bem, quem são eles?”, ouviu-se perguntar, “Diga seus nomes”.

Rip pensou por um momento e indagou: “Onde está Nicholas Vedder?”

Houve silêncio por um instante, até que um velho respondeu:

“Nicholas Vedder? Está morto e enterrado há dezoito anos! Havia uma lápide de madeira, no cemitério, que contava tudo sobre ele, mas apodreceu e sumiu”.

“Onde está Brom Dutcher?”

“Oh, alistou-se no exército, logo no começo da guerra; uns dizem que ele morreu em combate, outros que se afogou. Não sei, ele nunca mais voltou”.

“Onde está Van Bummel, o mestre-escola?”

“Alistou-se também, foi um grande general e agora está no Congresso”.

O coração de Rip se partiu ao ouvir essas tristes mudanças e ao ver-se assim, sozinho no mundo. Cada resposta o confundia, em se tratando de tão grandes lapsos de tempo e de assuntos que ele não conseguia entender. Não tinha coragem de perguntar por outros amigos, mas gritou desesperado: “Ninguém aqui conhece Rip Van Winkle?”

“Oh, Rip Van Winkle!”, exclamaram dois ou três, “Oh, claro!

Aquele ali, encostado na árvore, é Rip Van Winkle”.

Rip olhou e avistou uma réplica exata de si mesmo no tempo em que ele subiu a montanha. O pobre coitado estava agora completamente confuso. Duvidava de sua própria identidade, sem saber se era ele mesmo ou um outro qualquer. Em meio a esse embaraço, perguntaram-lhe quem ele era e qual era seu nome.

“Só Deus sabe”, exclamou.” Não sou eu mesmo... sou uma outra pessoa...aquele ali é que sou eu...não... alguém tomou o meu lugar... Eu era eu mesmo a noite passada, mas adormeci na montanha e mudaram minha espingarda e tudo mudou, e eu mudei, e não sei dizer qual o meu nome ou quem sou eu!”

Os que estavam presentes começaram então a olhar um para o outro, balançavam a cabeça, piscavam os olhos e passavam o dedo pela testa para dar a entender que o homem estava doido. Nesse momento, uma bela mulher abriu caminho na multidão para dar uma olhada no velho de barba grisalha. Trazia nos braços uma criança gorducha, que, assustada com o olhar de Rip, começou a chorar. “Quieto, Rip”, gritou ela, “quieto, seu bobinho; o velho não vai machucar você”. O nome da criança, a aparência da mãe, o tom de sua voz, tudo despertava um monte de recordações na mente de Rip.

“Qual é o seu nome, minha boa mulher?”, perguntou.

“Judith Gardiner”.

“E o nome do seu pai?”

“Ah, pobre homem, Rip Van Winkle era seu nome, mas faz vinte anos que ele saiu de casa com sua espingarda e nunca mais se ouviu falar dele... Seu cachorro voltou para casa sozinho, mas se ele se matou ou se os índios o raptaram, ninguém pode dizer. Na época, eu era uma garotinha”.

Rip só tinha mais uma pergunta a fazer, mas a fez com a voz tremendo:

“Onde está sua mãe?”

“Oh, ela também morreu, mas há pouco tempo; rebentou um vaso sangüíneo num acesso de cólera contra um vendedor ambulante”.

Havia naquilo uma ponta de consolo. Não pôde se conter mais. Abraçou sua filha e o filho dela. “Sou seu pai!’, gritou.

“Jovem Rip Van Winkle, em outros tempos...velho Rip Van Winkle, agora!...Ninguém reconhece o pobre Rip Van Winkle?”

Todos ficaram admirados, até que uma velha, destacando-se da multidão, colocou sua mão na sobrancelha e, olhando atentamente para o rosto de Rip por um momento, exclamou: “Não resta dúvida! É Rip Van Winkle... é ele mesmo! Bem-vindo em sua volta para casa, velho vizinho. Mas onde você esteve nesses vinte longos anos?”

A história de Rip foi narrada brevemente, pois os vinte anos tinham sido para ele apenas uma única noite. Os vizinhos ficaram espantados ao ouvi-la. Viram-se alguns piscarem o olho e fazer sinal de que achavam o homem louco.

Decidiu-se, porém, ouvir a opinião do velho Peter Vanderdonk. Era o mais antigo morador da aldeia e conhecedor de todos os acontecimentos extraordinários da redondeza. Reconheceu Rip imediatamente e confirmou sua história da maneira mais satisfatória. Assegurou ao grupo que era fato estabelecido que as montanhas Kaatskill eram freqüentadas por seres estranhos. Seu pai os tinha visto uma vez, em seus antigos trajes holandeses, jogando bola numa cavidade da montanha. Ele próprio havia ouvido, numa tarde de verão, o som de suas bolas, como barulho remoto de trovão.

Para encurtar a história, o grupo se desfez e voltou a cuidar de algo mais importante, a eleição. A filha de Rip o levou para morar em sua casa confortável e bem mobiliada junto com ela e o marido.

Rip lembrou que ele era um dos meninos que costumavam trepar às suas costas. Quanto ao filho e herdeiro de Rip, que era a sua imagem, trabalhava na fazenda, mas revelava uma tendência hereditária a só fazer o que lhe interessava. Rip agora retomava seus velhos hábitos. Encontrou muitos de seus antigos companheiros, mas todos tinham sofrido os estragos da passagem do tempo. Preferia fazer amigos entre a nova geração, entre a qual se tornou logo muito popular.

Sem nada para fazer em casa e tendo chegado àquela idade feliz em que um homem pode ser preguiçoso impunemente, tomou lugar mais uma vez no banco junto à porta da pousada e era reverenciado como um dos patriarcas da aldeia. Levou tempo para conseguir conversar normalmente ou compreender os estranhos acontecimentos que tinham ocorrido durante seu sono. Tinha havido uma guerra revolucionária, o país se libertara da Inglaterra e agora ele era um cidadão livre dos Estados Unidos. Na verdade, Rip não se interessava por política; as mudanças de estados e impérios pouco o impressionavam; mas havia uma espécie de tirania sob a qual ele sofrera muito tempo, a feminina. Felizmente chegara ao fim; livrara o pescoço do jugo do matrimônio e podia entrar e sair quando lhe desse na telha, sem temer a tirania da Senhora Van Rinkle. Sempre que seu nome era mencionado, porém, ele sacudia a cabeça, encolhia os ombros e erguia os olhos, o que podia passar por uma expressão de resignação para com seu destino ou alegria por sua liberdade.

Rip costumava contar sua história a todo estrangeiro que chegava ao hotel do Senhor Doolittle. Viam-no, de início, alterar certos detalhes cada vez que a contava, o que se devia, sem dúvida,

ao fato de ter despertado há tão pouco tempo. Mas, finalmente, a narrativa fixou-se exatamente nos moldes em que a narrei, e nenhum homem, mulher ou criança da redondeza deixava de a saber de cor. Alguns sempre duvidavam de sua veracidade e insistiam em que Rip tinha perdido o juízo. Os velhos habitantes holandeses, porém, acreditavam, quase todos, nela.

Ainda nos dias de hoje, jamais ouvem uma trovoada numa tarde de verão sobre o Kaatskill sem dizer que aquele grupo de homens estranhos estão jogando bola. E é um desejo comum a todos os maridos tiranizados pela esposa, na redondeza, quando a vida se torna um fardo, poderem beber um gole repousante do garrafão de Rip Van Winkle.

Assista a adaptação em video transmitida pela TV Cultura:












Fonte:
IRVING, Washington. Rip Van Winkle. In 4 contos. Adaptação de Paulo Sérgio de Vasconcellos e Rogério Hafez. 2a. Ed. SP: Ed. Sol, 2006.

Imagem:


Vídeos:

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Parte 2

Parte 3

Parte 4

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sexta-feira, 26 de março de 2010

"Casa tomada", de Julio Cortázar.




Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.

Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.

Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.

Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.

Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.

Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:

— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.

Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.

— Tem certeza?

Assenti.

— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.

Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.

Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.

— Não está aqui.

E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.

Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.

Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:

— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?

Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.

(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.

Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)

É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.

Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.

— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.

— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.

— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.

Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.



Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó. Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas “Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980) e “Salvo el crepúsculo” – póstumo (1984). O escritor morreu em Paris, de leucemia, em 1984.

O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiario" e extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09, organização e tradução de Alicia Ramal.

Site:
http://www.releituras.com/jcortazar_casa.asp
26/03/2010 – 10:30 da manhã.

terça-feira, 23 de março de 2010

"A criança em seu mundo" de Mário Sérgio Cotella



Essa é uma critica de minha autoria.
Claudio Azevedo.

A criança em seu mundo, de Mário Sérgio Cortella

Em sua palestra, Cortella questiona a educação passada pelos país e a evolução do mundo moderno. O que nós seremos quanto profissionais e país de familia, que tipo de cidadão formaremos para o futuro. E o futuro existirá?
Vivemos em um mundo consumista em que ninguém tem tempo para nada, às horas passam depressa e você anda preocupado com as suas contas que você tem pagar, e ainda garantir um espaço no mercado de trabalho. Há famílias tradicionais que tem tv, mas não dá muita confiança, rádio então, só se você estiver no transito da marginal ou da radial leste. Computadores hoje é que rouba a cena, todos querem ter e participar de sites de relacionamentos. A pessoa não tem paciência de entrar em cursinho de informática estudar as configurações do PC, mas para ter uma pagina no Orkut que é o mais popular ela tem.
O convívio familiar ainda não acabou por completo, ainda existem famílias que se reúnem nos finais de semana, e ainda existem país autoritários. O que existe são famílias diferentes de acordo com sua renda familiar. Tem familia que a avó é a chefe, é ela quem faz a compra da casa paga a água e a luz. O telefone está acabando hoje em dia, fale-se somente em celular e a cada dia tem um diferente. O pai e mãe, no geral, ou o pai trabalha em dois empregos e não tem tempo para a sua familia ou ele está preso. A mãe ou ela se vira sozinha com a educação do filho ou abandona.
Na escola em que trabalho, existem mães que abandonaram seus filhos deixando a criação para a mãe (avó ou avô) da criança, motivos, de montes: drogas, prostituição, morte enfim diversos casos que não são novidades para nós. O que realmente assusta é a quantidade de pessoas que estão nessa situação. Tudo isso que estou citando são problemas de classe baixa; de classe alta eu não tive contato em sala de aula ainda.
O relacionamento com outra pessoa também tem que ser bom, os conflitos são pelo motivo que cada pessoa tem sua opinião e defende sua ideia. E quando tem outra pessoa com o pensamento contrario, a pessoa não aceita um tal ponto de vista ou aceita em partes independente do tipo de relacionamento seja ele profissional ou familiar.

Nesse mundo: quais são os pontos de contatos que temos dentro dele?

Não sei se temos pontos de contatos nesse mundo hoje em dia, a impaciência está predominando (o Fast), não sei onde vamos chegar, desastres naturais cada vez mais fortes, as guerras acabaram o que existe hoje são ideologias, com o avanço do consumismo e a globalização de massas, não consigo responder essa questão.
Se nós, que vamos ser os novos profissionais para inovar e tentar mudar tudo isso, se não houver um pensamento conjunto, fora do individualismo predominante, não conseguiremos chegar a lugar algum.

O que temos a fazer é tentar...

O programa foi exibido pela TV cultura no programa "Café Filosófico".
http://www.tvcultura.com.br/cafefilosofico/